- Olha, assim não tenho condições de trabalhar! Essa garota e suas histórias pessoais atrapalham meu rendimento!! - Dobby gritou, os olhinhos muito verdes quase saltando da cara. Muriel olhou-a, dando de ombros. Aparentemente desistira de discutir com ser tão irritante. Miss D olhou as duas, girando sua cadeira vermelha e tirando os pés de cima do painel de observação. Ajeitou os cabelos muito negros, coçou o pescoço, apoiou os cotovelos nos joelhos. O próprio retrato da impaciência.
- Pois bem! O que você quer, Dobby? Além de ser o elfo mais eficiente, frio e chato do planeta Terra??
- Isso não é justo. Eu só quero fazer meu trabalho e ser reconhecida e não ter que perder meu tempo com as chorumelas dessa humana... Ou de qualquer outro. Humanos! São tão idiotas que precisam COMER para sobreviver... - cara de asco, olhos revirantes, ossos pontudos saltados por baixo dos farrapos infantis que a criaturinha vestia. Miss D olhou-a, as íris vermelhas e interrogativas percorrendo-a de alto a baixo. Ou melhor, de baixo a mais baixo. Sorriu.
- Sabe, Dobby, você devia voltar a Terra na pele de um humano para entender o que somos e como somos. E para aprender que você jamais, repito, jamaaaaaaais, deve se referir a espécie da sua chefe como idiota. Mas enquanto Hades não autoriza essa transação (sim, minha cara elfa anã, vou pedir a ele com a certeza de que esse céu continuará negro e você continuará feia), seu pequeno desprazer do dia será ouvir um relato de caso da minha vida. Pois bem... - ajeitou-se na cadeira, cruzando as pernas como uma criança. - Cafezinho, meu príncipe, venha cá e fique comigo enquanto isso, sim? Não quero o senhor mandando nenhuma tragédia pessoal longe das minhas vistas! - o gato virou-se, os olhinhos espertos e sorridentes fechando-se um pouquinho, e partiu aos saltos para o colo da amiga, que ajeitou-o e passou a acariciar sua cabeça. Ambos sorriram, encantados, presos naquele momento precioso de amizade e compreensão. Então Miss D suspirou, de repente lembrando-se de sua tarefa.
- Daí que durante toda a minha adolescência eu fui fechada feito uma ostra. Uma semi-autista, vivia o meu mundinho de céu perolado e brilhante, de colunas de livros e pilhas de conhecimento, de discovery channel a vídeos sobre as diversas civilizações do mundo. Essa era eu. Vivia muitas vidas, dos muitos personagens que tornaram-se meus melhores amigos. Amei meu gato, o Cafezinho lindo, e mais algumas pessoas, alguns amigos poucos, muito queridos, que tinham paciência e entendiam minha necessidade de ser só. Baladas? Namoros? Beijo na boca? Baaaah, coisa pra gente desocupada e sem ambição. Eu queria saber. Saber muito, saber tudo, muitos 10 no currículo e passar no vestibular direto do terceiro colegial. Era boazinha, quietinha, um poço de observação e olhos, muitos olhos, a absorver tudo o que se passava a meu redor, sem deixar que qualquer daquelas coisas me tocasse. Resumindo, anã élfica, eu parecia você. Um pouco melhor nutrida e menos amarga, mas parecia você. E sabe onde isso me levou? Exatamente, ao inferno! - gargalhada engraçada para quebrar o clima. A elfa anã olhou-a, sobrancelhas erguidas, como se aguardasse qualquer coisa acontecer. - Pois bem, antes do inferno, então... Me levou a me fechar mais e mais, a julgar as pessoas, a crer que só meu estilo de vida estava correto. Na verdade, eu invejava as pessoas, a facilidade com que se relacionavam, sorriam ou aceitavam o que a vida lhes atirava aos pés... Tornei-me amarga e cheia de mim. Cheia mesmo; nem eu conseguia me aguentar. E veio o rancor, a falta de docilidade, o cheiro de ódio amargado e curtido nos porões de uma alma em desuso. É isso que você quer? É onde chegam as pessoas que não se deixam tocar. Aquelas que nunca se emocionam, que não sentem o coração bater mais forte quando ouvem aquela música, que estão sempre enchendo de defeitos as pessoas e as situações. A vida passa, minha pequena criatura, e o que levamos daqui? Nossa agilidade, trabalhos em dia, competitividade e competência? Não. Pode acreditar. Quando tudo acabar, o filme que passa em nossa mente vai mostrar sorrisos amigos, corações partilhados, amores. Aaah, amores! Porque é pra amar que vivemos! É o amor que nos marca como ferro ardente, nos cicatriza pra sempre, cicatrizes de felicidade e sentir, que o tempo não apaga. É isso que vale a pena. Porque caem os cifrões, os títulos e até os rancores. Mas o amor? O amor fica. O amor vai. O amor gruda na alma, agarra-se a ela até que seja parte das suas partes. O sentir nos move porque no fundo no fundo, o amor é a esperança e o desejo último de todos e cada um de nós. Amor universal, amor de mãe e pai, amor de cachorro, de filho, de casal. Amor! Sinta e pare de fazer. Segure a respiração e sinta. Sinta, porque vale a pena. Sinta por sentir, sinta por você, sinta para ser melhor para os outros. Só não deixe que a poeira e a ferrugem da armadura que você veste imobilizem você. Porque aí, minha cara, será o inferno. O inferno verdadeiro, o encarcerar da alma, uma vida de BBB, dias de mentirinha, meses de passagem, anos de enchimento. Silicone emocional, tão fake quanto bebês de plástico a espreitar por trás de olhos de vidro. Vida de jarros vazios, sementes defuntas, céus negros sem estrelas. Inferno. Inferno.
- Daí que durante toda a minha adolescência eu fui fechada feito uma ostra. Uma semi-autista, vivia o meu mundinho de céu perolado e brilhante, de colunas de livros e pilhas de conhecimento, de discovery channel a vídeos sobre as diversas civilizações do mundo. Essa era eu. Vivia muitas vidas, dos muitos personagens que tornaram-se meus melhores amigos. Amei meu gato, o Cafezinho lindo, e mais algumas pessoas, alguns amigos poucos, muito queridos, que tinham paciência e entendiam minha necessidade de ser só. Baladas? Namoros? Beijo na boca? Baaaah, coisa pra gente desocupada e sem ambição. Eu queria saber. Saber muito, saber tudo, muitos 10 no currículo e passar no vestibular direto do terceiro colegial. Era boazinha, quietinha, um poço de observação e olhos, muitos olhos, a absorver tudo o que se passava a meu redor, sem deixar que qualquer daquelas coisas me tocasse. Resumindo, anã élfica, eu parecia você. Um pouco melhor nutrida e menos amarga, mas parecia você. E sabe onde isso me levou? Exatamente, ao inferno! - gargalhada engraçada para quebrar o clima. A elfa anã olhou-a, sobrancelhas erguidas, como se aguardasse qualquer coisa acontecer. - Pois bem, antes do inferno, então... Me levou a me fechar mais e mais, a julgar as pessoas, a crer que só meu estilo de vida estava correto. Na verdade, eu invejava as pessoas, a facilidade com que se relacionavam, sorriam ou aceitavam o que a vida lhes atirava aos pés... Tornei-me amarga e cheia de mim. Cheia mesmo; nem eu conseguia me aguentar. E veio o rancor, a falta de docilidade, o cheiro de ódio amargado e curtido nos porões de uma alma em desuso. É isso que você quer? É onde chegam as pessoas que não se deixam tocar. Aquelas que nunca se emocionam, que não sentem o coração bater mais forte quando ouvem aquela música, que estão sempre enchendo de defeitos as pessoas e as situações. A vida passa, minha pequena criatura, e o que levamos daqui? Nossa agilidade, trabalhos em dia, competitividade e competência? Não. Pode acreditar. Quando tudo acabar, o filme que passa em nossa mente vai mostrar sorrisos amigos, corações partilhados, amores. Aaah, amores! Porque é pra amar que vivemos! É o amor que nos marca como ferro ardente, nos cicatriza pra sempre, cicatrizes de felicidade e sentir, que o tempo não apaga. É isso que vale a pena. Porque caem os cifrões, os títulos e até os rancores. Mas o amor? O amor fica. O amor vai. O amor gruda na alma, agarra-se a ela até que seja parte das suas partes. O sentir nos move porque no fundo no fundo, o amor é a esperança e o desejo último de todos e cada um de nós. Amor universal, amor de mãe e pai, amor de cachorro, de filho, de casal. Amor! Sinta e pare de fazer. Segure a respiração e sinta. Sinta, porque vale a pena. Sinta por sentir, sinta por você, sinta para ser melhor para os outros. Só não deixe que a poeira e a ferrugem da armadura que você veste imobilizem você. Porque aí, minha cara, será o inferno. O inferno verdadeiro, o encarcerar da alma, uma vida de BBB, dias de mentirinha, meses de passagem, anos de enchimento. Silicone emocional, tão fake quanto bebês de plástico a espreitar por trás de olhos de vidro. Vida de jarros vazios, sementes defuntas, céus negros sem estrelas. Inferno. Inferno.