Empurrou sua mesa com os pés descalços, fazendo sua cadeira vermelha girar. Levantou-se, encaixando os pés nos sapatos também vermelhos e caminhou até a janela de sua sala. Olhou para o céu, pseudo-céu, preto preto, preto necrose, preto pupilas dilatadas e irresponsivas, preto morte, preto inferno. Sentia falta das estrelas, da chuva, das nuvens, da lua. Falta do azul, do nascer do sol, dos vales verdes de sua casa de campo. Arrependia-se, por vezes, da escolha irônica de aceitar um emprego na terra das trevas. Sentia falta de ser só ela mesma, de ser apenas uma menina, de seus dias antes de se tornar Miss D. Mas tinha uma missão ali, ou pelo menos era o que acreditava. Uma missão longa demais, talvez, mas igualmente necessária.
Um corvo pousou sobre o parapeito da janela, olhando-a com seus olhinhos de conta. Ela observou-o e estendeu a mão para ele, sorrindo.
- Olá Fernando! O que me conta?? - disse, o pássaro saltando para suas mãos. Estendeu sua cabecinha e puxou de uma das pernas um bilhetinho, estendendo-o a ela. Ela olhou-o, curiosa. - Ah, claro! Hades e sua mania de ser retrô! Não podia mandar uma mensagem de celular? Email? Deuses, em que século esse homem parou?? Corvo correio??
O pássaro observou-a, virando as costas, ofendido. Ela acariciou suas penas, dando-lhe um pedaço de alguma coisa amarelada, com cheiro de mel. Ele pareceu perdoa-la pela grosseria, fazendo uma espécie de reverência e voando para longe.
- Muito bem, muito bem, vamos ver o que nosso chefe manda-me dessa vez. "Achei que estava na hora de você ter uma assistente! Parabéns pelo bom trabalho. H.". Assistente?? Mas o q...
- Olá, madame! - disse uma criaturinha, cabeça pelada, orelhas grandes e pontudas, nariz enorme e muito fino, roupas esfarrapadas e 1,2m de altura, na melhor das hipóteses.
Miss D deu um pulo, deixando o bilhete cair. Olhou a recém-chegada com genuíno interesse, erguendo as sobrancelhas em dúvida. Sorriu.
- Gente, mas você é igualzinha ao Dobby, do Harry Potter. Hades me mandou um elfo doméstico??? Puta que pariu, ainda bem que ele está contente com o meu trabalho! Se estivesse achando ruim, me mandaria o quê de auxiliar? O Salsicha e o Scooby??? - e começou a rir da própria piada. A elfa fechou a cara, visivelmente ofendida.
- Ok, ok, desculpa, Dobby! Posso te chamar de Dobby? Esse lugar as vezes deixa a gente um pouco insensível, sabe? Quer dizer, não que eu fosse muito melhor viva, anyway... - e gargalhou novamente da própria piada. A elfinha observou-a, indecisa. Parecia desagradada e irritada.
- Olha, madame, eu só estou aqui porque o senhor Hades MANDOU. Pode me chamar do jeito que quiser, desde que eu consiga fazer meu trabalho e ganhar a aprovação de todos, ou melhor, o prêmio de elfo do mês, ou melhor, que eu aprenda alguma coisa para minha vida!!! - disse, fulminando Miss D com os olhinhos muito verdes. Miss D olhou-a, as pupilas vermelhas cheias de alguma coisa que quase parecia pena. Sorriu, os dentes muito brancos e sinceros aliviando a hostilidade que se instalara na pequena sala. Sorriu, porque o sofrimento mundano daquele ser mágico a comovia quase o mesmo tanto quanto sua avidez imbecil por produtividade a irritava. Sorriu porque sabia que tempos difíceis a esperavam com aquela "assistente", mas, no fundo, Miss D estava desesperada por companhia. Sorriu porque quando se mora em Infernópolis, poucas são as oportunidades de sorrir.
só uma palavra: interessante...
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