As pessoas moviam-se, lusco fusco, almas brilhantes a circular sob
a chuva. Os pássaros, pequenos amontoados
de penas molhadas, encolhiam-se em ninhos de todos os tipos nas copas das árvores, pequenos deuses a observar a movimentação dos mortais abaixo. Gatos, olhos brilhantes e
questionadores, enfiados em bueiros e embaixo de bancos, evitavam a água incômoda que
caía. Um labrador amarelo
latia ao longe, feliz, sorridente, tentando apanhar as gotas de chuva enquanto
seu dono erguia o guarda-chuva e gritava seu nome. A chuva apertou, muitas
gotas risos, gotas lágrimas, gotas do que se
quer que seja. Para ela, eram gotas lágrimas.
Gotas tristeza. Gotas saudades de um tempo que já não voltava. E ninguém sabia ou se importava. Ninguém parava e olhava pra cima, ou pra baixo?,
imaginando que alguém os observava naquele
momento, com lágrimas de chuva ácida, lágrimas
bronze em um céu de prata. Lágrimas vapor, água no inferno.
Afastou-se dos monitores de observação da Terra, voltando os olhos para Dobby, que trabalhava ao lado.
Pensou naquele serzinho alienado e chato, brigas constantes com Muriel; tolos
seres do inferno. Tola ela, que aceitara tal cargo. Tolo o mundo, que precisava
de pessoas em cargos como o seu.
-Miss D, eu estive pensando em todo o MEU trabalho nesses últimos tempos e, quer saber?? Se a Muriel não deixar de ser incompetente, vou passar por
cima dela. Não quero nem saber! Já tenho meus planos de promoção, não vou
deixar uma sem estudos como aquela garota me atrapalhar!!
- Dobby, vai com calma. Eu não estou de bom humor hoje... Pra colocar fogo em um ou dois é um palito e meio. Então não força, gata... Gata! Até parece! Quem forçou agora fui eu! - Miss D
riu-se, os olhos vermelhos faiscando risadinhas. Dobby olhou-a com raiva, os lábios apertados e a carinha feia enrugada.
Voltou-se a suas anotações, balbuciando coisas
inaudíveis.
Miss D deu de ombros e se preparava para acionar botões de tragédias pessoais quando um gavião gigantesco entrou voando pela janela, uma caixa plástica de transportar animais segura em seus
grandes pés.
- Pelos deuses, Cadu! Você me
assustou!!
- Desculpa, senhora Divina! Certamente não foi a intenção! - respondeu o animal,
voz grossa de radialista. Abaixou a cabeça em uma espécie de reverência e retirou uma prancheta de algum lugar
debaixo de sua asa esquerda, estendendo-a com o bico para que Miss D assinasse.
- O que temos aí, Cadu?? Quem mandou??
- Presentinho especial do senhor Hades. Mandou esse bilhetinho
também! Adiantou-me que não conseguia vê-la tão triste... O pobre homem
tem um coração enorme, você vê. Pena
que seja tão pão-duro... Enfim... Agora, se me dá licença, tenho um dia de entregas
pela frente!
- Senhor Hades, é? Huum, curioso! - Miss D
olhava para o papel muito negro em suas mãos, sem saber o que esperar. Cadu bateu asas de repente,
derrubando a pequena Dobby de sua cadeira, que soltou um guincho estridente.
Miss D continuava hipnotizada pelo papel. Terminou de ler e deixou que caísse no chão, abaixando-se junto a gaiola de transporte animal.
- Não acredito!! Não pode ser! Cafezinho, é você mesmo?? Por deuses, é você! Meu
anjinho, meu príncipe, que saudades de você! - disse, em meio a muitas lágrimas, abrindo a caixa e retirando de dentro um
gato todo preto, de olhinhos verdes e ronronar forte. Ele parecia incrivelmente
feliz em vê-la, fechando os olhos e
sorrindo aos carinhos. Os dois ficaram assim, abraçados em um reencontro de almas, reencontro de amores, fusão feliz dos há muito apartados. Miss D chorava lágrimas doce, lágrima chuva, lágrimas açúcar, choro ouro em em rio de prata. Sorria e abraçava aquele que havia por tanto tempo guardado a
melhor parte de sua alma. Sorria e abraçava aquele seu amigo, velho amigo, que um dia se fora e deixara um
vazio em sua vida. Sorria e abraçava
aquele que faria com ela a melhor dupla de Tragédicos de toda a Infernópolis.
Sorria e abraçava aquele que viera para
fazê-la mais feliz em outra época, muito distante, e que agora retornava,
gato fiel, amigo eterno, anjo da guarda.
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